Urana
feminismos, pirataria, subteorias, políticas monstruosas, movimentos de vida, multidões, artivismo, lutas anômalas, saberes desobedientes e dissidência
O GIRO ANTROPOÊMICO DE PEDRX SOLANGE
Categories: General

 

por Jota Mombaça

Eu estava lá, no Nalva Melo Café Salão, na Ribeira de Natal, quando Pedrx Solange despiu-se e ficou de quatro, em frente a uma plateia agitada, e tirou do cu um terço. Lembro-me que, antes mesmo da ação ocorrer, nos circuitos alternativos da cidade, não se falava de outra coisa, mas sempre em tons jocosos como se aquela ação nada tivesse de política ou de artística e não passasse de um gesto publicitário de um artista ávido por seus 15 minutos de fama. De certo modo, esse tom foi mantido e intensificado pela torrente de comentários, notas, matérias e críticas que emergiram, nas mídias locais e nacionais, tanto online quanto impressas, posteriormente à realização da performance no XIII Salão de Artes Visuais da Cidade do Natal, realizado pela Fundação Capitania das Artes em 2010.

Se a polêmica gerada por essa performance, por um lado, resultou de uma abertura da instituição, por meio da equipe curatorial, a uma proposta controversa como a de Pedro, por outro, fê-la retroagir. Na época, o jornalista Eugênio Bezerra, assessor da então prefeita Micarla de Sousa, declarou que x artista não receberia a premiação da Funcarte em função de sua seleção para o XIII Salão de Artes Visuais, numa tentativa de penalizá-lx por sua ação. As declarações do assessor foram logo desmentidas quando, no Diário Oficial do Município, foi publicada, no dia 23 de Março de 2010, a lista com o nome dos artistas premiados, incluindo o de Pedro, e a garantia de pagamento do prêmio no valor de R$1350,00. A confirmação do pagamento do prêmio a Pedro Costa, conforme previsto no edital promovido pela Funcarte, ao ser anunciada em matéria do jornal local Tribuna do Norte1, resultou numa série de comentários na plataforma online revoltados com a destinação do erário para financiamento de uma obra de arte “herética”, “indecente” e “pornográfica”:

comments against pedra

Print da página http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/artista-que-retirou-rosario-do-anus-vai-receber-premiacao-da-funcarte/143756. Acesso a: 30/05/2014, 08:16h.

No blog Máquina de Escrever – Um olhar crítico sobre literatura, cinema e artes plásticas, escrito por Luciano Trigo e hospedado no G1 da Globo.com2, “a performance do terço” – como ficou conhecida – ganhou mais repercussão “negativa”, sendo identificada como “extravagância” pelo crítico autor do livro “A Grande Feira – Uma reação ao vale-tudo na arte contemporânea”. Trigo chegou a mencionar a obra “Piss Christ”, do aclamado Andres Serrano, que consiste na fotografia de um crucifixo mergulhado em urina, afirmando que, “se esse tipo de obra é reconhecido e valorizado pelo sistema de arte, é natural que vire modelo a ser copiado, em países periféricos, por artistas em busca de 15 minutos de fama”. Dessa maneira, o crítico posiciona a obra de Pedro Costa numa posição subalterna, representando-a como mero efeito de um modismo legitimado pelo sistema de arte internacional, deslocando-a, portanto, do contexto no qual é criada e, assim, contribuindo para um esvaziamento dos possíveis efeitos políticos no interior do sistema de arte local no qual a obra se insere.

A estratégia discursiva mobilizada por Luciano Trigo, além de tacanha, reflete uma operação de poder que consiste, precisamente, na anulação política da obra, uma vez que, ao deslegitimá-la enquanto obra de arte, a crítica se torna estéril, pois, ao invés de lançar-se às questões suscitadas pela performance, contenta-se em atualizar o desgastado debate sobre o que deve ser admitido enquanto arte, tornando inviável que as questões tensionadas pelo artista venham à tona. Assim, ao invés de fertilizar, a partir da obra de Pedro, diálogos entre religiosidade e sexualidade, arte e política, colonialidade e descolonização do corpo, a crítica de Luciano Trigo recorre a uma estratégia discursiva cujo único objetivo é o de contribuir ainda mais para o silenciamento dessas questões.

Mas a repercussão da performance do “terço” não se resumiu a tentativas de deslegitimação baseadas em critérios sobre o que é ou não arte. O escritor Mario Ivo, em seu blog, numa crônica intitulada “Cu”3, apontou para o desgaste desta questão a partir da menção a uma famosa anedota na qual Marcel Duchamp oferece a uma pergunta mais ou menos como esta “então, se eu fizer tal e tal coisa é arte?” uma resposta mais ou menos como esta “se você fizer, não, mas se eu fizer, sim.” A partir da resposta de Duchamp, Mario Ivo torna evidente que a definição acerca do que é ou não é arte não se baseia jamais em critérios fixos, sendo, pelo contrário, contingente – em múltiplos contextos, a arte pode se manifestar de múltiplas formas; consequentemente, tirar o terço do cu pode ser muitas coisas, inclusive arte. Contudo, na sequência do texto, o escritor não deixa de querer lançar a obra de Pedrx num espaço discursivo onde as questões suscitadas por ela não encontram lastro para desenvolver-se. Ancorado numa idéia que se assemelha à de “originalidade”, Mario Ivo provoca: “esse tipo de arte, que busca o choque pelo choque é bem velhinha, né não?”. A esse respeito, Pedro Costa, numa das entrevistas concedidas posteriormente à sua performance no XIII Salão, oferece o que poderia ser uma resposta à provocação de Mario Ivo:

Eu, na verdade, não acredito em ‘originalidade’. Acredito em tradução, reprodução, citação, contaminação e na ação de borrar as fronteiras. Prefiro o borderline, o in between, o que escapa. (…) se você ler as Revistas de Antropofagia e compreender o que eles escreviam, eu devo estar uns 80 anos atrasado.” (Entrevista concedida a Vicente Vitoriano para a Revista Palumbo, edição Maio, 2010)

Nessa mesma entrevista, concedida ao crítico Vicente Vitoriano em Maio de 2010, Pedro Costa oferece pistas potentes para uma abordagem da performance do “terço”. Menos interessado em definir paradigmas artísticos a partir dos quais desenvolver seu trabalho, Pedrx, por diversas vezes, reivindica essa posição fronteiriça, no limite das linguagens artísticas, como também no limite que separa arte e política. Em seu movimento de borda, interroga tanto o domínio da arte – “pouco me importa a invenção ou a poética artística. Nem gosto desses termos.” –, quanto o da política – “Pelo que compreendo, [o movimento gay] busca uma categorização e um status social do que é ser gay; busca uma aceitação. Eu não busco isso.” –, instigando, dessa maneira, o transbordamento dessas categorias e a contaminação de uma pela outra. Como na descrição do perfil de seu projeto Solange, tô Aberta! no facebook, trata-se mais de “festejar as margens e comemorar a precariedade”4 que de consolidar-se em zonas artísticas e políticas seguras.

Assim é que, ao tirar um terço do cu no âmbito do XIII Salão de Artes Visuais da Cidade do Natal, excita uma teia de questões que em muito ultrapassam o velho debate sobre o que é ou não arte ou sobre o que é novo ou velho na arte contemporânea. Ao ser perguntadx, numa entrevista concedida a William Magalhães para o site ACapa, sobre a função da arte, Pedrx responde: “Arte é crítica, ou seja, põe em crise. Por isso artistas podem ser tão perigosos…”5 Talvez tenha sido dessa perigosa crise que tenham querido escapar aqueles que deram repercussão à performance do terço por vieses normativos e moralizantes. Aqui, interessa-me exatamente o contrário. Gostaria de, neste ensaio, seguir a trilha que Pedro Costa começou a desenhar com sua ação, intensificar a crise instaurada pela sua obra, forçar seus limites, descobrir que outras crises é possível instaurar a partir dela. Como ponto de partida, pergunto: o que a performance do terço põe em crise? E deixo que x próprix Pedrx me ofereça a pista:

ent. pedro 2

Trecho da entrevista concedida por Pedro Costa a Vicente Vitoriano para a Revista Palumbo.

Não é exatamente no sentido do corpo-colônia cristianizado que os rastros deixados pela obra de Pedrx me lançam. Que essa história de vigilância, normalização e genocídio, no caso específico da “performance do terço”, está como aquilo que “nos cerca e nos delimita, não diz o que somos, mas aquilo de que estamos em vias de diferir”6. É para diferir do corpo-colônia cristianizado que Pedrx expurga o terço pelo cu.

Nesse sentido, difere também da “indiferença ao dogma” atribuída à forma como aquelxs que aqui estavam recebem a palavra de Deus. Que a indiferença, diante da cruzada histórica do cristianismo contra toda diferença, toda possibilidade de vida que não seja regida por seus mandamentos, pode vir a tornar-se, depois de sucessivos genocídios, conivência silenciosa. E o silêncio nunca nos protegeu7. Oswald de Andrade berra, no Manifesto Antropófago: “não fomos catequizados”8. Mas é inclusive possível, que, depois de sucessivas “catequizações”, a própria Antropofagia, identificada pela colonização cristã como “mau costume” a ser extirpado da vida social, e reativada, agora cheia de novos contornos subjetivos, estéticos, éticos e políticos, pela vanguarda da Semana de Arte Moderna de 1922, tenha sido, ela mesma devorada em alguma medida pelos circuitos produtivos do capitalismo global integrado atual, como veremos adiante a partir de Suely Rolnik (2005).

Na conferência “Antropofagia Zumbi”9, proferida em 2005, no Encontro Internacional De Antropofagia em São Paulo, a autora inicia sua reflexão a partir de duas cenas de banquetes antropofágicos protagonizadas por nativos contra os europeus que vinham explorar seus mundos: uma na qual os indios Caetés cozinham e devoram os corpos do primeiro bispo do Brasil, Bispo Sardina, e dos 90 membros de sua tripulação, que havia vindo iniciar a catequese da terra recém conquistada; e outra na qual os índios Tupinambá, depois de capturarem Hans Staden (um aventureiro alemão que se tornou famoso por sua literatura de viagens pelo Brasil), decidem não dar cabo do banquete por diagnosticarem naquela carne “a ausência dos sabores da valentia”. Rolnik procura reinserir, partindo dessas cenas, no debate contemporâneo a respeito da antropofagia, um princípio ético: “o outro é para ser devorado ou abandonado. Não é qualquer outro que se devora. A escolha depende de avaliar como sua presença afeta o corpo em sua potência vital. A regra é afastar-se daqueles que a debilitem e aproximar-se daqueles que a fortifiquem.”10

O critério de admissão de uma cultura no banquete antropofágico, conforme Rolnik buscará demonstrar, não é, portanto, “seu sistema de valores per se”, nem está ligado a uma hierarquia de conhecimento bem definida, pois diz respeito, mais bem, a um tipo de seleção voltada a saber se esse tal sistema, ou um fragmento dele que seja, funciona em relação às potências particulares daqueles que o devoram, se podem ou não “proporcionar meios para a criação de mundos”11. Assim é que o que está constantemente em jogo, para uma antropofagia vitalista, é se aquele banquete intensificará ou não a potência de vida de quem devorá-lo.

Com a emergência de novos modos de subjetivação em operação no marco do capitalismo cognitivo, que tomam a forma de “subjetividades flexíveis”, emergirá uma tendência à antropofagia como traço fundamental das subjetividades contemporâneas.

Ocorre que “o modo de subjetivação antropofágico nos ensina que a liberdade de hibridização em si mesma não nos garante nada, no sentido em que pode ser investida por muitas políticas diferentes, desde a mais crítica até a mais reativa”12. Rolnik buscará alertar, então, para a emergência, transversal a esses novos modos de subjetivação, de todo um maquinário capitalista cujo objeto é, cada vez mais, a produção de “mundos-imagens fabricados pela propaganda e pela cultura de massas”, cujo efeito sobre as subjetividades é o de preparar o “solo cultural, subjetivo e social para a implantação de mercados”13. Mundos “prêt-à-porter” que não cessam de ser atualizados pelos consumidores, aos quais se é, cada vez mais, requerida uma “grande agilidade cognitiva para captar e selecionar a pluralidade desses mundos que nunca acabam de ser lançados”, um tipo de atletismo subjetivo que torne possível “saltar de um mundo a outro”, “uma facilidade em traduzir-se de novo conforme a maneira de ser específica de cada um desses mundos prontos para usar14. Assim é que essa antropofagia devorada pelas subjetividades capitalísticas contemporâneas revela a faceta perversa da subjetividade antropofágica, porque neutraliza seu princípio ético associado à vitalidade do encontro: em lugar de uma antropofagia vitalista, centrada numa ideia de devoração ligada ao aumento da potência de vida, à qual Rolnik chamará “alta antropofagia”15 ou “antropofagia ativa”, uma antropofagia zumbi, ou “reativa”, que já não encontra na presença viva e desestabilizante do outro seu objeto de devoração, mas, sim, numa identificação com esses mundos prêt-à-porter lançados incessantemente pelo mercado16.

Neste ponto reencontramos os disruptivos rastros da ação de Pedro. Seu gesto de expurgação do terço aciona, no campo mesmo das subjetividades contemporâneas que o novo capitalismo busca modular, uma linha-de-força já não no sentido das “subjetividades flexíveis” apresentadas por Rolnik como resultado de uma antropofagia zumbi. Em lugar da devoração formatada para a continuidade do consumo incessante de mundos-imagem prontos para usar, como aqueles produzidos no marco de um cristianismo pop, por exemplo, com o Papa Francisco na capa da Rolling Stones anunciando que “os tempos estão mudando”17; uma negação, não tanto como a dos Tupinambá em relação a Hans Staden, cuja carne se negam a comer, posto que não lhes parece possuir os “sabores da valentia”, mas como um vômito – a reversão de um mau encontro antropofágico.

TERÇO

Foto: Joto/Revista Catorze

SÓ A ANTROPOFAGIA?

Então tomo emprestada a pergunta feita no texto de Apresentação do Caderno de Comunicações do Seminário Vômito e Não – Práticas Antropoêmicas na Arte e na Cultura (2012): “Diante da devoração generalizada a que somos constantemente submetidos, (…), qual o lugar do vômito, da excreção, do não?”

Gostaria de registrar, aqui, uma brevíssima arqueologia que tome em conta alguns dos gestos negativos, ativados no campo das artes contemporâneas brasileiras dos anos 60/70, em torno da antropofagia. Começarei pela obra de Antonio Dias, artista visual paraibano, partindo do artigo “Vômito de Imagens, Constrição e Diarreia – Modos de Regulação da ‘Participação do Espectador’ na Arte Brasileira dos Anos 60/70” de Gustavo Motta18, disponível no caderno de comunicações do seminário mencionado anteriormente. Nele, Motta procura demonstrar o modo como, nas primeiras obras de Dias, embora a apropriação de clichês ligados à pop art seja uma constante, não há propriamente uma absorvição da pop, mas, antes, essas estruturas formais aparecem “fragmentadas, trituradas, regurgitadas”, ou, nas palavras do próprio artista, na forma de “vômitos imagéticos” – “como se, recebendo uma insípida ração importada, a bulimia aparecesse como única estratégia de sobrevivência.”19

O vômito, como observa Marion Velasco Rolim (2012)20, é o “não do corpo”. Assim é que os vômitos imagéticos de Antonio Dias geram um “bolo gástrico” que, ao ser expulso do corpo, expulsa consigo os signos pop triturados, exibindo a face ao mesmo tempo “terrível (diante de sua violenta fragmentação, aglomeração e implosão) e patética”21 desses signos. O gesto negativo de Dias está ligado a um processo coletivo de tomada de posição dos artistas brasileiros em relação a problemas “políticos, sociais e éticos” que o contexto dos anos 60/70 fez emergir, com a instauração no país da Ditadura Militar a partir de 1964, e, dessa maneira, vai transformar-se à medida em que sua própria experiência, marcada por um antes e depois do exílio, desdobrar novas formas de perceber e lidar com tais problemas.

Inicialmente, entre o golpe militar e o exílio do artista, o dispositivo ‘antropófago’ de Dias negou-se criticamente a absorver o conteúdo das formas importadas, regurgitando-os. Após o AI-5 e a tomada de consciência de que as contradições específicas do capitalismo periférico se encontram afinadas em escala global, restava ainda um expediente a ser experimentado – nas palavras de Oiticica, ele poderia ser definido como ‘dissecar as tripas dessa diarreia’.” (Motta, 2012)

Em “Brasil Diarreia” (1970), Helio Oiticica força-nos a constatar um caráter “diarreico” na formação brasileira. Para o artista, trata-se de contrariar o “moralismo quatrocentão (de origem branca, cristã-portuguesa)” e o “cultivo de ‘bons hábitos’”, mergulhando na merda, dissecando “as tripas dessa diarreia”22. Para tanto, Oiticica incita proposições radicais, que instaurem uma posição crítica permanente e um experimentalismo que se opõem à diluição na diarreia23, que, aqui, não é, portanto, como o vômito em Dias, uma negação ativa da “ínsipida ração importada”, mas o resultado de um ecletismo pálido que tudo dilui, impedindo o “desejável experimentalismo”24. O gesto negativo que Oiticica exorta em “Brasil Diarreia” não é a diarreia propriamente, à qual seu projeto artístico-político se opõe, mas uma certa “omissão consciente”, um “pular fora” que ao artista parece “mais importante para a ‘cultura brasileira’ revolucionária do que participar do contexto imediatamente ‘policiado’”25.

O vômito de Dias e o “pular fora” de Oiticica, conectados que estão pelo contexto que compartilham, definem linhas-de-força no sentido de uma subtração, ora das estruturas formais oriundas da arte internacional, ora da diluição que impede o acúmulo crítico e faz minguar as potencialidades criativas brasileiras. São gestos que afirmam o não como potência criadora, num tipo de negação positiva: negar o que existe para, assim, fazer emergir um novo; “pular fora” de um percurso sitiado e tomar outra rota; ou, para usar palavras de Oiticica em “Brasil Diarreia”: “dizer-se que algo chegou ao fim (…) assumir uma posição critica diante de um fato, propor uma mudança; e propor uma mudança é mudar mesmo”. Como a expurgação do terço na performance de Pedro. Um não ao corpo cristianizado que é um sim aos devires de um corpo outro, sem terço.

Levi-Strauss, no livro Tristes Trópicos (1955), define dois tipos de práticas sociais no que concerne a forma de lidar com o outro: antropofagia e antropoemia. Sendo as sociedades antropofágicas caracterizadas pela ideia segundo à qual “a absorção de certos indivíduos detentores de formas temíveis” é “o único meio de neutralizá-las e mesmo aproveitá-las”; ao passo que aquelas que praticam a antropoemia, “postas diante do mesmo problema, escolhem a solução inversa”, expulsando esse outro do corpo social, regurgitando-o26. O que podemos observar, a partir dessa incipiente arqueologia que busquei traçar, conectando o gesto de expurgação de Pedro à produção artística e escrita de Antonio Dias e Hélio Oiticica, é que o “dispositivo antropófago”, como foi desenvolvido no Brasil na esteira da vanguarda de 22, não deixa de perturbar essa aparente separação entre cultura antropoêmica e antropofágica, pois que se nota, em cada um desses gestos negativos acima mencionados, uma dimensão antropoêmica própria à ética antropofágica.

Ora, se estamos frente a um capitalismo que a tudo devora, por meio de uma subjetivação antropofágica que visa dar conta da flexibilidade e da velocidade de hibridização dos mundos prontos para consumir incessantemente lançados por um mercado cognitivo que opera em rede, não deixa de ser uma antropofagia zumbi ou “diarreica”, para retomar a expressão de Oiticica, que tende a instaurar-se como traço fundamental das subjetividades capitalísticas contemporâneas. É nesse contexto que uma antropoemia vitalista, caracterizada pela negação contingente de uma alteridade – baseada em critérios similares aos que balizariam a ética antropofágica, conforme Rolnik27 –, emerge como resistência à diarreia mórbida do capitalismo antropófago.

Um negar-se a comer que é afirmação da potência de vida, ou seja, da possibilidade de criar mundos não engendrados pela lógica do capitalismo cognitivo atual; um procedimento negativo que visa, mais bem, revigorar uma maneira de lidar com a diferença distinta daquela ativada pela antropofagia zumbi. Suely Rolnik, em seu artigo “Políticas da hibridação: Evitando falsos problemas” (2010), lembra-nos que, para os Tupinambá, o ritual antropofágico se dava por meio de um “prolongado e rigoroso resguardo”, do qual a consumação do canibalismo seria apenas uma de suas etapas. Como, então, reativar esse cuidado com o que se devora, a fim de produzir uma “cartografia de si e do mundo que traga as marcas da alteridade”, sem, contudo, reduzir esse procedimento a um “mero consumo de ideias” que, reiteradamente, extirpe das subjetividades antropofágicas sua “vitalidade político-poética”28?

Aposta: um giro antropoêmico que reinscreva o vômito no dispositivo antropófago, e que permita suspender a devoração generalizada à qual estamos submetidos. Mas que se registre: o modo de subjetivação antropoêmico em si não garante nada, uma vez que pode ser agenciado de múltiplas formas. Neste ponto, não é seguro ignorar a antropoemia dos dispositivos coloniais, que fizeram da negação do outro o principal mecanismo de produção identitária. Trata-se, mais uma vez, de inserir nessa equação uma tendência ética que implique a articulação entre antropoemia e antropofagia como procedimento ativo de criação de cartografias de si e do mundo nas quais seja mais a diferença que a identidade o elemento primordial.

NOTAS

1 Tribuna do Norte. “Artista que retirou rosário do ânus vai receber premiação da Funcarte”. Publicado em http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/artista-que-retirou-rosario-do-anus-vai-receber-premiacao-da-funcarte/143756. Acesso a: 30/05/2014, 08:16h.

2 Luciano Trigo. “Artista plástico ‘descoloniza o corpo’. Publicada em 27/03/2010 em http://g1.globo.com/platb/maquinadeescrever/2010/03/27/performance-em-natal-gera-polemica/. Acesso a: 14/07/2014, 22:25h.

3 Mario Ivo. “Cu”. Publicada em 24 de Março de 2010 em http://www.marioivo.com.br/cu/. Acesso a: 14/07/2014, 22:25h.

4 Solange, tô aberta. Página de facebook: https://www.facebook.com/pages/Solange-t%C3%B4-aberta/183305078375213?fref=ts. Acesso a: 14/07/2014, 22:25h.

5 Costa, Pedro. Entrevista concedida a William Magalhães. “Em salão de artes visuais, performer tira terço do ânus”. Publicada em 19/03/2010 disponível em http://acapa.virgula.uol.com.br/mobile/noticia.asp?codigo=10502. Acesso a: 14/07/2014, 22:25h.

6 Deleuze, Gilles. “A vida como obra de arte”. In: DELEUZE, Gilles. Conversações, 1972-1990. São Paulo: Ed. 34, 1992. p. 119

7 Inspirada em Audre Lorde (1980): “Seu silêncio não vai te proteger.”.

8 ANDRADE, Oswald de. O manifesto antropófago. In: TELES, Gilberto Mendonça.Vanguarda européia e modernismo brasileiro: apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. 3ª ed. Petrópolis: Vozes; Brasília: INL, 1976.

9 Conferência de Suely Rolnik durante o ENCONTRO INTERNACIONAL DE ANTROPOFAGIA.
Sesc Pompéia, São Paulo, dezembro/2005. Parte 1. Disponível: http://www.youtube.com/watch?v=vil8cWpGsIc. Acesso a: 14/07/2014, 22:25h.

10Ibid.

11 Rolnik, Suely. “Antropofagia Zombie”. In: EXPOSITO, Marcelo (edit.). Brumaria 7 – Arte, máquinas, trabajo immaterial. Madrid: Documenta 12 Magazine Project, dezembro/2006. p.184

12Rolnik, Suely. “Políticas de hibridação: Evitando falsos problemas”. In: Cadernos de Subjetividade. São Paulo: Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade, do Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, 2010.

13 Ibid.

14 Rolnik, 2006: p. 193

15 Rolnik, Suely. “Subjetividade antropofágica/Antropophagic Subjectivity”. In: HENRKENHOFF, Paulo e PEDROSA, Adriado (edit.). “Arte contemporânea brasileira: Um e/entre outro/s”, XXIVª Bienal Internacional de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1998. p.143

16 Conferência de Suely Rolnik durante o ENCONTRO INTERNACIONAL DE ANTROPOFAGIA.
Sesc Pompéia, São Paulo, dezembro de 2005. Parte 4. Disponível: https://www.youtube.com/watch?v=apTtn-XV4-c. Acesso a: 14/07/2014, 22:25h.

17 G1 – MUNDO. “Papa Francisco é capa da revista ‘Rolling Stone’”. Publicada em 28/01/2014 http://g1.globo.com/mundo/noticia/2014/01/papa-francisco-e-capa-da-revista-rolling-stone.html. Acesso a: 14/07/2014, 22:25h.

18Motta, Gustavo. “Vômito de Imagens, Constrição e Diarreia – Modos de Regulação da ‘Participação do Espectador’ na Arte Brasileira dos Anos 60/70”. In: Seminário Vômito e Não – Caderno de Comunicações. Rio de Janeiro: Azougue, 2012.

19 Ibidem. p.61-62

20Rolim, Marion Velasco. “Entre vitrines, vômitos e outras indigestões ‘ao seu alcance’”. In: Seminário Vômito e Não – Caderno de Comunicações. Rio de Janeiro: Azougue, 2012. p.

21 Motta, 2012: p.

22 Oiticica, Hélio. Brasil Diarreia (1970). Arte em Revista, São Paulo, Kairós/ CEAC, ano 3, nº 5, maio, 1981.

23 Ibidem

24 Motta, 2012: p.

25 Oiticica, 1970.

26 Apud Apresentação de Seminário Vômito e Não – Caderno de Comunicações. Rio de Janeiro: Azougue, 2012.

27 “o outro é para ser devorado ou abandonado. Não é qualquer outro que se abandona. A escolha depende de avaliar como sua presença afeta o corpo em sua potência vital. A regra é afastar-se daqueles que a debilitem e aproximar-se daqueles que a fortifiquem.” Rolnik, 2005: Parte 1

28 Rolnik, 2010: p. (Caderno de subjetividade)

Referências

Apresentação de Seminário Vômito e Não – Caderno de Comunicações. Rio de Janeiro: Azougue, 2012.

Andrade, Oswald de. O manifesto antropófago. In: TELES, Gilberto Mendonça.Vanguarda européia e modernismo brasileiro: apresentação e crítica dos principais manifestos vanguardistas. 3ª ed. Petrópolis: Vozes; Brasília: INL, 1976.

Costa, Pedro. Entrevista concedida a William Magalhães. “Em salão de artes visuais, performer tira terço do ânus”. Publicada em 19/03/2010 disponível em http://acapa.virgula.uol.com.br/mobile/noticia.asp?codigo=10502. Acesso a: 14/07/2014, 22:25h.

__________. Entrevista concedida a Vicente Vitoriano. Revista Palumbo, Natal, maio/2010.

Deleuze, Gilles. “A vida como obra de arte”. In: DELEUZE, Gilles. Conversações, 1972-1990. São Paulo: Ed. 34, 1992. p. 119

G1 MUNDO. “Papa Francisco é capa da revista ‘Rolling Stone’”. Publicada em 28/01/2014 http://g1.globo.com/mundo/noticia/2014/01/papa-francisco-e-capa-da-revista-rolling-stone.html. Acesso a: 14/07/2014, 22:25h.

Ivo, Mario. “Cu”. Publicada em 24 de Março de 2010 em http://www.marioivo.com.br/cu/. Acesso a: 14/07/2014, 22:25h.

Motta, Gustavo. “Vômito de Imagens, Constrição e Diarreia – Modos de Regulação da ‘Participação do Espectador’ na Arte Brasileira dos Anos 60/70”. In: Seminário Vômito e Não – Caderno de Comunicações. Rio de Janeiro: Azougue, 2012.

Oiticica, Hélio. Brasil Diarreia (1970). Arte em Revista, São Paulo, Kairós/ CEAC, ano 3, nº 5, maio, 1981.

Rolim, Marion Velasco. “Entre vitrines, vômitos e outras indigestões ‘ao seu alcance’”. In: Seminário Vômito e Não – Caderno de Comunicações. Rio de Janeiro: Azougue, 2012.

Rolnik, Suely. “Subjetividade antropofágica/Antropophagic Subjectivity”. In: HENRKENHOFF, Paulo e PEDROSA, Adriado (edit.). “Arte contemporânea brasileira: Um e/entre outro/s”, XXIVª Bienal Internacional de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1998. p.143

___________. Conferência durante o ENCONTRO INTERNACIONAL DE ANTROPOFAGIA.
Sesc Pompéia, São Paulo, dezembro/2005. Parte 1. Disponível:
http://www.youtube.com/watch?v=vil8cWpGsIc. Acesso a: 14/07/2014, 22:25h.

___________. Conferência durante o ENCONTRO INTERNACIONAL DE ANTROPOFAGIA.
Sesc Pompéia, São Paulo, dezembro de 2005. Parte 4. Disponível:
https://www.youtube.com/watch?v=apTtn-XV4-c. Acesso a: 14/07/2014, 22:25h.

___________. “Antropofagia Zombie”. In: EXPOSITO, Marcelo (edit.). Brumaria 7 – Arte, máquinas, trabajo immaterial. Madrid: Documenta 12 Magazine Project, dezembro/2006. p.184

___________. “Políticas de hibridação: Evitando falsos problemas”. In: Cadernos de Subjetividade. São Paulo: Núcleo de Estudos e Pesquisas da Subjetividade, do Programa de Estudos Pós-graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, 2010.

Solange, tô aberta. Página de facebook: https://www.facebook.com/pages/Solange-t%C3%B4-aberta/183305078375213?fref=ts. Acesso a: 14/07/2014, 22:25h.

Tribuna do Norte. “Artista que retirou rosário do ânus vai receber premiação da Funcarte”. Publicado em http://www.tribunadonorte.com.br/noticia/artista-que-retirou-rosario-do-anus-vai-receber-premiacao-da-funcarte/143756. Acesso a: 30/05/2014, 08:16h.

Trigo, Luciano. “Artista plástico ‘descoloniza o corpo’. Publicada em 27/03/2010 em http://g1.globo.com/platb/maquinadeescrever/2010/03/27/performance-em-natal-gera-polemica/. Acesso a: 14/07/2014, 22:25h.

 

Comments are closed.