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Transgênero ou Cisgênero Enrustido?
Categories: Feminismos

por Leticia Lanz

em LETÍCIA LANZ

 

Simples “cheque de portas”: – sou uma pessoa transgênera ou um “cisgênero enrustido”? Uma coisa é a pessoa ser uma “transgressora de gênero”, alguém que busca, consciente e deliberadamente, livrar-se do rótulo de gênero que lhe foi pregado à testa quando nasceu e dentro do qual se sente totalmente desajustada. Outra coisa é a pessoa dizer que “sempre pertenceu” ao outro gênero; que é, portanto, uma espécie de ET, completamente deslocada do seu planeta natal.

A primeira hipótese faz a  constatação da miséria de rótulos de gênero em que a humanidade tem vivido: – duas e somente duas alternativas de classificação para sete bilhões de pessoas. Social, cultural e politicamente falando, não existe nenhuma outra alternativa além dessas duas: – ou se é homem ou se é mulher e não se fala mais nisso.Ridículo, mas ao mesmo tempo gravíssimo, ver todas as possibilidades humanas reduzidas a um binário oficial masculino-feminino ou homem-mulher.

“Problemaço” para quem não se sente nem pertencente nem confortável em nenhuma dessas duas categorias oficiais. Problemaço para expressar um gênero que não existe. Mesmo porque, até hoje, ninguém apresentou um modelo inequivocamente convincente do que é ser homem ou ser mulher (ou ainda transexual, travesti, crossdressers, coisa nenhuma e o escambau). De jeito que a maioria das pessoas vive mergulhada em ficções de si próprias, tentando desesperadamente ajustar sua imagem pública de modo que ela seja algo inteligível e aceitável quando projetada no espelho da sociedade.

O problema é que até Judith Butler,  uma das mais ardorosas críticas da precariedade e inconsistência dos modelos identitários, reconhece a identidade como um “mal necessário”…  De tal sorte que parece ser impossível viver sem uma identidade que seja socialmente inteligível e esteja politicamente legitimada.

Por isso a submissão inerte e passiva da maioria das pessoas ao “nivelamento de gênero”, onde suas peculiaridades individuais mais expressivas são sempre duramente reprimidas ou descartadas, em favor de listas estereotipadas de atitudes, gestos, discursos, desejos e vestuário. As “originalidades” de cada pessoa devem permanecer recalcadas debaixo de um dos dois rótulos que ela recebeu ao nascer – mulher ou homem – em função da sua genitália exposta. Este é o fenômeno que eu chamo de “riachuelização” da vida, em alusão às grandes redes de lojas que, tal como a sociedade, reduzem as pessoas a duas e somente duas categorias: – o departamento masculino e o departamento feminino.

Embora cada pessoa nasça tão original quanto uma criação de Jean Paul Gaultier, desde o útero da mãe ela é forçada a abrir mão da sua individualidade mais genuína, em função dos seus genitais. Sim, em função do que traz entre as pernas ao nascer! Grotesco e nojento imaginar que o destino de todas nós é regulado por uma simples órgão genital! Como é grotesco e cruel imaginar que alguém seja capaz de renunciar a ser uma obra única e exclusiva para tornar-se exemplar de um produto fabricado em série, uma cópia obsessiva-compulsiva de um dos dois gêneros oficiais: – masculino ou feminino. Ou, como diz Judith Butler, uma “paródia” de uma peça que absolutamente não dispõe de nenhum original.

Sou transgênera porque não me ajusto em nenhum dos dois modelos de identidade de gênero que existem, isto é, não sou homem nem sou mulher. Sou um outro gênero qualquer, um não-gênero ou uma degenerada. Não estou a fim de identidade nenhuma, mas em ter pleno acesso aos direitos de pessoa humana que me são veementemente negados em função da identidade que não tenho nem quero ter,

Mas enquanto existem pessoas transgêneras como eu, num discurso queer dedicado à inteira “revogação” da norma de gênero, há também aquelas pessoas transgêneras cuja preocupação central é virem a ser enquadradas e aceitas como membros do gênero oposto àquele em que foram originalmente enquadradas ao nascer, em função dos genitais que exibiram aos “saberes médicos” na hora do parto. Essa convicção de pertencer inequivocamente a um dos modelos identitários faz de uma pessoa não uma pessoa transgênera, senão um CISGÊNERO ENRUSTIDO.  Uma mulher “presa” num corpo de homem ou um homem “preso” num corpo de mulher.  Com, aliás, a mesma orientação sexual ditada pela regra heteronormativa que vigora absoluta: – se homem, você tem que querer transar com mulher e, se mulher, tem que querer transar necessariamente com homem.

Problemaço para alguém como eu, que não sou homem nem mulher. Que me apresento socialmente como mulher e, por isso mesmo, deveria gostar de homem mas gosto de mulher.

Desde cedo em minha vida eu tive que comprar briga com a sociedade para garantir um lugar de fala minimamente legitimado. E como nunca me enquadrei em nenhum dos dois códigos de conduta de gênero oficialmente aceitos, tive sempre que realizar árduas negociações com família, emprego, escola e comunidade a fim de encontrar um modo culturalmente aceito para o meu modo de ser e de estar no mundo,  E tive que lutar muuuuuito, mas muuuuuito mesmo, para continuar sendo uma criação original (e nem precisa ser um Jean Paul Gaultier…) em um mundo onde, para eu ser aceita e integrada à sociedade, devo submeter-me, sem discussão, a um permanente processo de “riachuelização”.

Dentro do gueto transgênero, tive igualmente que comprar brigas ferrenhas para escapar do processo não menos sutil e sacana de “heteronormatização” da transgeneridade onde, se uma pessoa se apresenta à sociedade no estereótipo de mulher deve, necessariamente, revelar atração por homens. Ou seja, dentro do gueto transgênero, para ser aceita como transgênera, a pessoa tem que mostrar credenciais heteronormativas!  Transgays e Translésbicas (meu caso) são absolutamente mal vindas, e vistas com muita reserva pela maioria, que considera meu comportamento uma grave transgressão da “transgressora ordem transgênera”… Afffffffff com centenas de “efes”, pô!

Quem sou eu para julgar alguém que, na condição de transgênero, tem o firme desejo de se tornar uma perfeita pessoa cisgênera heterossexual do gênero oposto, perfeitamente integrada e aceita pela sociedade. Mas nem por isso estou disposta a submeter-me à “riachuelização”, cedendo à pressão que recebo, de dentro do próprio gueto, com o objetivo claro de me fazer abdicar da minha expressão individual de gênero para “ficar bem na foto”. O que significa estar “perfeitamente enquadrada” em alguma dessas pífias definições de identidades de gênero transgêneras que circulam por aí, como transexual, travesti ou crossdresser, e que não dizem nem significam absolutamente nada além das tolas e ultrapassadas convenções sociais que representam.

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