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Okupar e interromper as escadas! Sobre as Arquiteturas Normativas e a fuga pela Acessibilidade Não-fascista

por Jota Mombaça

 

Em relação a que corpo interpelamos como corpos-deficientes aqueles formados segundo um padrão minoritário? Que significa dizer sobre um corpo que ele é deficiente físico? Afinal, que práticas definem a totalidade de um corpo e debaixo de que regime elas operam?

Se escrevo corpo minoritário, é porque quero evidenciar uma micropolítica, encontrar em cada singularização uma excentricidade, um erro criativo capaz de introduzir no corpo rígido da norma uma velocidade que o perfura e danifica. O corpo minoritário invoca posturas alternativas, formas singulares de habitar e gerir o espaço, de mover-se por ele, formas que corporificam um contraponto vivo ao modo operacional hegemônico. Defendo que xs tortxs de todas as estirpes interrogam o corpo molar sobre sua hegemonia, traindo-a, desmascarando sua suposta totalidade.

A categoria “deficiente físico” tem como limite uma norma corporal específica, que conduz uma leitura do corpo conforme um ideal transcendente: o corpo humano supostamente completo sobre o qual se pode dizer que tem duas pernas, dois braços, uma genitália funcional territorializada pelo regime da diferença sexual heteronormativa (pau-macho-penetrador de fêmeas ou boceta-fêmea-receptáculo de machos), cabeça, ombro, joelho e pé. Quem representa a multiplicidade de corpos inconformes como corpos partidos, incompletos, deficientes, é o marco de inteligibilidade definidor do corpo humano anatomicamente normal. Assim é que a “deficiência física” se define não em relação à forma imanente ao corpo minoritário, não é um atributo dx “deficiente”, mas, sim, o resultado de um processo de exclusão perpetrado em nome do ideal anatômico normativo.

É preciso reconhecer, numa inversão de lógica, que o que chamamos de deficiência física é menos uma limitação que um gatilho para saberes e práticas alternativas. O aleijo não é a marca de uma falta, mas, sim, uma antena, que anseia por conexões: conexões com as próteses, com outros corpos, com as arquiteturas acessíveis… O corpo aleijado solicita ao regime de humanidade, responsável pela produção de corpos normais e anormais e dos espaços onde estes circulam, uma outra visão sobre o corpo, sobre os espaços e sobre as formas de ser-com socialmente legitimadas.

Não me parece correto dizer de umx deficiente físico que apenas elx porta necessidades especiais se temos em vista o fato de que todo corpo, tenha ele duas pernas amputadas ou não, depende de uma sorte de tecnologias para acessar os espaços em que se move. Posso ilustrar essa afirmação com um jogo imaginativo simples: há um prédio de dois pisos, um superior e um térreo, sem escadas, elevadores ou qualquer outra tecnologia de acesso, como os corpos supostamente completos fazem para mover-se de um piso a outro? Ora, como desconsiderar o fato de que todo o padrão arquitetônico geralmente empregado na produção dos espaços urbanos reflete “as necessidades especiais” do corpo dito normal? Basta considerarmos as escadas como “necessidades especiais” dos corpos bípedes naturalizados, para desnaturalizarmos as arquiteturas normativas e a pseudototalidade desse corpo da normalidade. Não é o corpo que é eficiente, mas o espaço regulado pela hegemonia desse corpo que o é.

Para que se torne possível compreendermos melhor a reivindicação daqueles que estão excluídos do mundo inventado por e para corpos de duas pernas, dois braços, cabeça, ombro, genitália, joelho e pé, é necessário aprendermos a reconhecer a limitação desses corpos que se passam por normais. Em outras palavras, precisamos pensar a arquitetura normativa como um projeto que garante acessibilidade a um único tipo de corpo, excluindo todos os outros de seu domínio, portanto como um regime de acessibilidade fascista.

Okupar e interromper as escadas é um gesto político radical que traz à tona a mobilidade impraticável nos espaços coordenados pela racionalidade desse humano bípede naturalizado. A monstruosidade de um ato político como esse está, precisamente, no fato de que ele faria passar pelo campo político fluxos que o expandem porque perturbam nossas próprias definições rígidas sobre o corpo e sobre a gestão arquitetônica dos espaços, para muito além da política institucional. Pilhar as arquiteturas normativas é minar a exclusão que elas operam, porque significa produzir uma igualdade original – sem espaços de privilégio, as relações são forçadas à horizontalidade. Então algo se dobra, e podemos tomar o aleijo como ponto de partida ao invés da pseudototalidade do corpo naturalizado.

Por todos os lados, essa falsa completude da norma se vê perfurada, rasgada, aberta a linhas-de-fuga. A saída pela acessibilidade não-fascista se apresenta, sobretudo, àquelxs que dela dependem mais diretamente, mas traz consigo, como potência, uma torção capaz de mover-nos excentricamente, na direção de outros mundos, outros espaços e outros corpos.

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