Urana
feminismos, pirataria, subteorias, políticas monstruosas, movimentos de vida, multidões, artivismo, lutas anômalas, saberes desobedientes e dissidência
Sobre macacos, bichas e vadias. Entrevista na íntegra.

Entrevista concedida por Jota Mombaça a Marcelo Hailer, da Revista Fórum, para construção da matéria Sobre macacos, bichas e vadias a respeito da ressignificação de termos difamatórios e dos limites dessa estratégia política no caso da campanha publicitária #SomosTodosMacacos.

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1 – Assim que a campanha #SomosTodosMacacos ganhou as redes, parte da discussão se polarizou a respeito de uma possível ressignificação política da palavra “macaco” e houve uma aproximação com o termo “vadia” das Marchas da Vadia (Slutt Walk) e também com o termo “queer”, do movimento norte-americano. O que você acha de tal aproximação?

A aproximação pode, à primeira vista, parecer pertinente, contudo é preciso saber isolar os termos e considerá-los em suas particularidades. No caso do termo “vadia”, o que está em jogo é uma conduta, um modo particular de agenciar moda, sexualidade e política que transgride a normatividade definida por um regime de verdade sexista, misógino e patriarcal sobre como devem as mulheres se comportar. Nesse sentido, a ressignificação ganha uma consistência ética e estética, que afirma não só a apropriação de um termo pejorativo, mas também um modo de vida singularizado por essa ressignificação. Com o termo “queer”, do movimento estadunidense, acho que a coisa vai também por aí. Mas e com o termo “macaco”, em que tipos de efeito sua “ressignificação” está implicada?

Em primeiro lugar, registro o tom duplamente violento dessa interpelação, que sub-humaniza os corpos negros, reativando uma estratégia discursiva escravista, ao mesmo tempo em que articula um especismo que consiste, precisamente, na apropriação da categoria “macaco” como termo inferiorizante. Antropocentrismo e racismo, afinal, quase sempre estiveram associados. Quanto à campanha #SomosTodosMacacos, talvez caísse bem se estivéssemos politizando as práticas laboratoriais que envolvem testes em animais, por exemplo; mas se a intenção é se posicionar contra o racismo, ela me sai como um tiro no pé. Sobretudo se consideramos o contexto espetacularizado no qual ela se tem desdobrado. A grife do Luciano Huck já está vendendo uma linha de camisetas com bananas negras e a hashtag da campanha por R$69 a unidade, o que revela, além de um oportunismo do empresário, a desconexão dessa campanha com a realidade do racismo no Brasil, profundamente atravessada por dinâmicas de classe. Ora, de onde então vem essa ressignificação? Daqueles historicamente inferiorizados e representados como subhumanos pela mirada branca e colonial? Ou de uma campanha publicitária desde o início capturada pela lógica acrítica da política pronta-pra-consumir? Desconfio que temos, nesse caso, um outro tipo de “ressignificação política”, matizada não pela irreverência dos sujeitos oprimidos, como nos casos de “queer” e “vadia”, mas por uma racionalidade publicitária descomprometida com a luta dos negros no Brasil e no mundo. Uma ressignificação perversa que, ao invés de criar um lastro positivo a partir do qual inventar políticas radicais de combate ao racismo, contribui para um empalidecimento da luta antirracista, posto que a converte num item de consumo isento de qualquer comprometimento ético com os movimentos negros.

2 – Gostaria que vocês comentassem da utilização política e de sua ressignificação do termo “queer”/ bicha/ esquisito.

O termo “queer” eu nunca o ressignifiquei. Ele já me apareceu ressignificado, ou melhor, foi importado assim: significado como política anti-normativa e erudição teórica contra-disciplinar pelo movimento estadunidense. Com o termo “bicha” a coisa é diferente. Esse eu o aprendi como xingamento, e foi em tom pejorativo que fui, ao longo da minha vida, interpelado com ele. Me gritaram “bicha!”. E o fizeram para dizer-me que “bicha” é errado, imundo, inadequado, anormal, e que por essas zonas eu não deveria passar se quisesse ser certo, limpo, adequado, normal. Sendo que nem todo corpo-com-pênis tem anseio de ser homem heterossexual. Falo por minha diferença: prefiro a pintosidade, e a persigo ao invés da heteronorma. Meu cu canibal quer me fazer estranho, monstruoso, inadequado e é a partir desse descentramento (essa vontade de não ser o que querem fazer de mim) que a ressignificação desse termo que me foi lançado como xingamento pelo heteroterrorismo se faz potente. Porque não basta dizer “bicha é bom”, e criar mais uma posição confortável no mercado identitário. É preciso fazer, com toda a pintosidade de uma bicha, ranger o regime que define o que é bom e o que não é. Não pedir para ser normal, mas perturbar a norma. É para isso que invisto numa ressignificação do termo bicha.

3 – Na tua opinião, acha que o termo bicha/ queer hoje possui uma potência política?

Sim. Tenho notado uma proliferação no Brasil de iniciativas políticas que tomam esse termo como disparador. Bicha passa a significar não somente uma posição identitária inconforme com a heteronorma, como também um vetor de luta anti-capitalista. Não é o “homossexual” do discurso médico patologizante, nem o “gay” capturado pela política representativa ou pelo fluxo de pink money, mas a “bicha, preta, pobre, vadia e degenerada” da letra do Anarcofunk que reclama uma política da pintosidade e aposta, à la Pink Block, na fechação como ferramenta de mudança. Falo aqui de um ativismo bicha implicado em sobreviver ao cangaço das heterocisdades de um dos países que mais mata bichas no mundo hoje. Menos Harvey Milk que Madame Satã. Falo de uma posição política dilatada, que envolve a esquerda e o movimento LGBT mas não se reduz a nenhuma dessas formas. Acho que o termo bicha hoje traz toda essa carga. E me vejo muito implicado nisso tudo.

4 – Na tua avaliação, a subversão de termos difamatórios tem se mostrado eficaz no debate político? Por exemplo, no desarmamento do discurso conservador.

A subversão de termos difamatórios em si mesma não garante nada, pois pode produzir efeitos políticos diversos. Se por um lado essa estratégia pode ser mobilizada no sentido de uma desprogramação das significações sexistas, como no caso da Marcha das Vadias, e heteroterroristas, como no caso desse ativismo bicha sobre o qual falava; pode também ter sua potência política neutralizada por iniciativas publicitárias oportunistas como a da campanha #SomosTodosMacacos. À medida em que nos aproximamos das políticas da diferença, torna-se evidente a insuficiência de modelos de análise fechados. A realidade das lutas contra a opressão requer uma multiplicidade de olhares e uma multiplicidade de estratégias, que possam adaptar-se aos diversos contextos nos quais essas relações de poder se dão. Assim é que a estratégia da ressignificação dos termos difamatórios pode tanto ter eficácia no debate político, descaracterizando discursos conservadores e empoderando sujeitos historicamente subalternizados, quanto servir à reiteração da violência contra minorias. É preciso, portanto, considerá-la em sua complexidade, para não agirmos com ingenuidade frente aos sistemas de opressão nos quais somos enredados.

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